quinta-feira, junho 28, 2012



Marta e Maria e o Documento Final da Cúpula dos Povos




por Nancy Cardoso Pereira

Posso escolher ser Marta, ou devo sempre ser Maria?  O texto de Lucas 10, 38 a 42 representa bem o imaginário em disputa das mulheres seguidoras de Jesus, mas também a disputa entre modelos de fidelidade. O texto dobra as mulheres num binário fixo: a ativista e a piedosa, a prática e a contemplativa. De modo explícito o texto posiciona Marta numa postura de cobrança e rivalidade quando pede que Jesus avalie e se posicione em relação às duas irmãs. Quase não existe possibilidade de visualizar uma Marta contemplativa e uma Maria ativista. Colocadas uma contra a outra, as mulheres ainda precisam da aprovação de um homem para serem valorizadas.
A idéia de que o Evangelho faz o elogio da contemplação circula livremente entre nós afinal, "Maria escolheu a melhor parte" (v.42). Mas quem se dá bem mesmo nesta história e quem fica com "a melhor parte" é Jesus que reúne o melhor das duas discípulas, que convive sem excluir com uma e com outra. O amor e o companheirismo de Jesus (João 11, 5) se confirmam também em momento de crise e de tristeza em que Marta se adianta e Maria fica.
Se no primeiro caso da visita de Jesus o ativismo de Marta poderia ser exagerado, no segundo texto - da morte de Lázaro - não! Existe uma crise, uma perda, uma situação de emergência que tira Marta de casa, que aciona a pressa e encurta o caminho do clamor e da intervenção. Porque se apressa e se lança no grito, Marta antecipa também a boa nova de superação da crise: a morte não diz a última palavra: Lazaro quer dizer: "Deus é o meu auxílio"! A salvação vem.
A afirmação de fé de Marta: "eu tenho crido! " e sua iniciativa de chamar a irmã Maria e também apressá-la faz com que a história de Lázaro corra mais depressa... do choro pela morte evidente ao clamor pela possibilidade de vida. Choro e lamentação que se resolvem em fé e esperança. Maria também corre. Todos se comovem. É hora de acreditar. Marta e Maria se igualam no pragmatismo e na esperança, na denúncia e no testemunho de fé, no que já "cheira mal" e no "tira essa pedra".
"Lázaro, vem pra fora. Desatai-o, e deixai-o ir". (João 11, 43 e 44)
Vivemos uma semana intensa nestes primeiros dias de inverno no Brasil: Rio +20, Cúpula dos Povos, conflito de terra no Pará, ameaça de golpe de direita no Paraguai... entre uma coisa e tantas outras a mídia golpista insiste no pragmatismo dos acordos ruins que protegem o capitalismo "tingido" de verde e ridiculariza as ações "radicais" dos/as ativistas, de manifestantes que não se contentam com os acordos entre governos porque sabem que "o papel é paciente... a história não é!"
No Belo Monte comunidades tradicionais e movimentos sociais se apressaram e na marra e na unha rasgaram a barragem que aprisiona o Xingu : tudo misturado, compromisso e mística, contemplação poética  e intervenção política: "viva nossa luta"! (http://www.youtube.com/watch?v=ORXsACCjn8k&feature=player_embedded).
Nas ruas do Rio de Janeiro mais de 80 mil pessoas se organizaram e se mostraram comovidas e resolvidas, denunciaram a preguiça dos acordos governamentais e se afirmaram na impaciência do trabalho de base, da articulação de movimentos e agendas e na "fé cega faca amolada" de um outro mundo possível (http://www.youtube.com/watch?v=c2CLxeLNrLc_).
O papel é paciente, aceita tudo, aceita continuar destruindo vidas, comunidades e o planeta só mais um pouquinho pra salvar bancos, empresas e as elites mundiais. A história continua impaciente exigindo de nós tudo ao mesmo tempo: oração e luta, contemplação e intervenção. Nós, da leitura popular da Bíblia temos o desafio de não deixar a Bíblia ser um papel a mais, um documento preguiçoso e intimista. Desatamos os nós e vamos! 
O documento final da Cúpula dos Povos vai juntando nossos compromissos e nossa oração:
Contra a militarização dos Estados e territórios;
Contra a criminalização das organizações e movimentos sociais;
Contra a violência contra as mulheres;
Contra as grandes corporações;
Contra a imposição do pagamento de dívidas econômicas injustas;
Pela garantia do direito dos povos à terra e território urbano e rural;
Pela soberania alimentar e alimentos sadios, contra agrotóxicos e transgênicos;
Pela garantia e conquista de direitos;
Pela solidariedade aos povos e países, principalmente os ameaçados
por golpes militares ou institucionais, como está ocorrendo agora no Paraguai;
Pela soberania dos povos no controle dos bens comuns,
contra as tentativas de mercantilização;
Pela democratização dos meios de comunicação;
Pelo reconhecimento da dívida histórica social e ecológica;
Pela construção do Dia Mundial de Greve Geral;

Declaração final da Cúpula dos Povos:  
Movimentos sociais e populares, sindicatos, povos e organizações da sociedade civil de todo o mundo presentes na Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, vivenciaram nos acampamentos, nas mobilizações massivas, nos debates, a construção das convergências e alternativas, conscientes de que somos sujeitos de uma outra relação entre humanos e humanos e entre a humanidade e a natureza, assumindo o desafio urgente de frear a nova fase de recomposição do capitalismo e de construir, através de nossas lutas, novos paradigmas de sociedade.
A Cúpula dos Povos é o momento simbólico de um novo ciclo na trajetória de lutas globais que produz novas convergências entre movimentos de mulheres, indígenas, negros, juventudes, agricultores, famílias e camponeses, trabalhadores, povos e comunidades tradicionais, quilombolas, lutadores pelo direito a cidade, e religiões de todo o mundo. As assembleias, mobilizações e a grande Marcha dos Povos foram os momentos de expressão máxima destas convergências.
As instituições financeiras multilaterais, as coalizações a serviço do sistema financeiro, como o G8/G20, a captura corporativa da ONU e a maioria dos governos demonstraram irresponsabilidade com o futuro da humanidade e do planeta e promoveram os interesses das corporações na conferência oficial. Em contraste a isso, a vitalidade e a força das mobilizações e dos debates na Cúpula dos Povos fortaleceram a nossa convicção de que só o povo organizado e mobilizado pode libertar o mundo do controle das corporações e do capital financeiro.
Há vinte anos o Fórum Global, também realizado no Aterro do Flamengo, denunciou os riscos que a humanidade e a natureza corriam com a privatização e o neoliberalismo. Hoje afirmamos que, além de confirmar nossa análise, ocorreram retrocessos significativos em relação aos direitos humanos já reconhecidos. A Rio+20 repete o falido roteiro de falsas soluções defendidas pelos mesmos atores que provocaram a crise global. À medida que essa crise se aprofunda, mais as corporações avançam contra os direitos dos povos, a democracia e a natureza, sequestrando os bens comuns da humanidade para salvar o sistema econômico-financeiro.
As múltiplas vozes e forças que convergem em torno da Cúpula dos Povos denunciam a verdadeira causa estrutural da crise global: o sistema capitalista patriarcal, racista e homofóbico.
As corporações transnacionais continuam cometendo seus crimes com a sistemática violação dos direitos dos povos e da natureza com total impunidade. Da mesma forma denunciamos a dívida ambiental histórica que afeta majoritariamente os povos oprimidos do mundo, e que deve ser assumida pelos países altamente industrializados, que ao fim e ao cabo, foram os que provocaram as múltiplas crises que vivemos hoje.
O capitalismo também leva à perda do controle social, democrático e comunitário sobre os recursos naturais e serviços estratégicos, que continuam sendo privatizados, convertendo direitos em mercadorias e limitando o acesso dos povos aos bens e serviços necessários à sobrevivência.
A dita "economia verde"é uma das expressões da atual fase financeira do capitalismo que também se utiliza de velhos e novos mecanismos, tais como o aprofundamento do endividamento público-privado, o super-estímulo ao consumo, a apropriação e concentração das novas tecnologias, os mercados de carbono e biodiversidade, a grilagem e estrangeirização de terras e as parcerias público-privadas, entre outros.
As alternativas estão em nossos povos, nossa história, nossos costumes, conhecimentos, práticas e sistemas produtivos, que devemos manter, revalorizar e ganhar escala como projeto contra-hegemônico e transformador.
A defesa dos espaços públicos nas cidades, com gestão democrática e participação popular, a economia cooperativa e solidária, a soberania alimentar, um novo paradigma de produção, distribuição e consumo, a mudança da matriz energética, são exemplos de alternativas reais frente ao atual sistema agro-urbano-industrial.
A defesa dos bens comuns passa pela garantia de uma série de direitos humanos e da natureza, pela solidariedade e respeito às cosmovisões e crenças dos diferentes povos, como, por exemplo, a defesa do "Bem Viver" como forma de existir em harmonia com a natureza, o que pressupõe uma transição justa a ser construída com os trabalhadores e povos.
Exigimos uma transição justa que supõe a ampliação do conceito de trabalho, o reconhecimento do trabalho das mulheres e um equilíbrio entre a produção e reprodução, para que esta não seja uma atribuição exclusiva das mulheres. Passa ainda pela liberdade de organização e o direito a contratação coletiva, assim como pelo estabelecimento de uma ampla rede de seguridade e proteção social, entendida como um direito humano, bem como de políticas públicas que garantam formas de trabalho decentes.
Afirmamos o feminismo como instrumento da construção da igualdade, a autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade e o direito de uma vida livre de violência. Da mesma forma reafirmamos a urgência da distribuição de riqueza e da renda, do combate ao racismo e ao etnocídio, da garantia do direito a terra e território, do direito à cidade, ao meio ambiente e à água, à educação, a cultura, a liberdade de expressão e democratização dos meios de comunicação.
O fortalecimento de diversas economias locais e dos direitos territoriais garantem a construção comunitária de economias mais vibrantes. Estas economias locais proporcionam meios de vida sustentáveis locais, a solidariedade comunitária, componentes vitais da resiliência dos ecossistemas. A diversidade da natureza e sua diversidade cultural associada é fundamento para um novo paradigma de sociedade.
Os povos querem determinar para que e para quem se destinam os bens comuns e energéticos, além de assumir o controle popular e democrático de sua produção. Um novo modelo energético está baseado em energias renováveis descentralizadas e que garanta energia para a população e não para as corporações.
A transformação social exige convergências de ações, articulações e agendas a partir das resistências e alternativas contra hegemônicas ao sistema capitalista que estão em curso em todos os cantos do planeta. Os processos sociais acumulados pelas organizações e movimentos sociais que convergiram na Cúpula dos Povos apontaram para os seguintes eixos de luta:
Voltemos aos nossos territórios, regiões e países animados para construirmos as convergências necessárias para seguirmos em luta, resistindo e avançando contra o sistema capitalista e suas velhas e renovadas formas de reprodução. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário