Marta e Maria e o Documento Final da Cúpula dos Povos
por Nancy Cardoso Pereira
Posso escolher ser Marta, ou devo
sempre ser Maria? O texto de Lucas 10, 38 a 42 representa bem o
imaginário em disputa das mulheres seguidoras de Jesus, mas também a disputa
entre modelos de fidelidade. O texto dobra as mulheres num binário fixo: a
ativista e a piedosa, a prática e a contemplativa. De modo explícito o texto
posiciona Marta numa postura de cobrança e rivalidade quando pede que Jesus
avalie e se posicione em relação às duas irmãs. Quase não existe possibilidade
de visualizar uma Marta contemplativa e uma Maria ativista. Colocadas uma
contra a outra, as mulheres ainda precisam da aprovação de um homem para serem
valorizadas.
A idéia de que o Evangelho faz o elogio
da contemplação circula livremente entre nós afinal, "Maria escolheu a
melhor parte" (v.42). Mas quem se dá bem mesmo nesta história e quem fica
com "a melhor parte" é Jesus que reúne o melhor das duas discípulas,
que convive sem excluir com uma e com outra. O amor e o companheirismo de Jesus
(João 11, 5) se confirmam também em momento de crise e de tristeza em que Marta
se adianta e Maria fica.
Se no primeiro caso da visita de Jesus
o ativismo de Marta poderia ser exagerado, no segundo texto - da morte de
Lázaro - não! Existe uma crise, uma perda, uma situação de emergência que tira Marta
de casa, que aciona a pressa e encurta o caminho do clamor e da intervenção.
Porque se apressa e se lança no grito, Marta antecipa também a boa nova de
superação da crise: a morte não diz a última palavra: Lazaro quer dizer:
"Deus é o meu auxílio"! A salvação vem.
A afirmação de fé de Marta: "eu
tenho crido! " e sua iniciativa de chamar a irmã Maria e também apressá-la
faz com que a história de Lázaro corra mais depressa... do choro pela morte
evidente ao clamor pela possibilidade de vida. Choro e lamentação que se
resolvem em fé e esperança. Maria também corre. Todos se comovem. É hora de
acreditar. Marta e Maria se igualam no pragmatismo e na esperança, na denúncia
e no testemunho de fé, no que já "cheira mal" e no "tira
essa pedra".
"Lázaro, vem pra fora. Desatai-o,
e deixai-o ir". (João 11, 43 e 44)
Vivemos uma semana intensa nestes
primeiros dias de inverno no Brasil: Rio +20, Cúpula dos Povos, conflito de
terra no Pará, ameaça de golpe de direita no Paraguai... entre uma coisa e
tantas outras a mídia golpista insiste no pragmatismo dos acordos ruins que
protegem o capitalismo "tingido" de verde e ridiculariza as ações
"radicais" dos/as ativistas, de manifestantes que não se contentam
com os acordos entre governos porque sabem que "o papel é paciente... a
história não é!"
No Belo Monte comunidades tradicionais
e movimentos sociais se apressaram e na marra e na unha rasgaram a barragem que
aprisiona o Xingu : tudo misturado, compromisso e mística, contemplação
poética e intervenção política: "viva nossa luta"!
(http://www.youtube.com/watch?v=ORXsACCjn8k&feature=player_embedded).
Nas ruas do Rio de Janeiro mais de 80
mil pessoas se organizaram e se mostraram comovidas e resolvidas, denunciaram a
preguiça dos acordos governamentais e se afirmaram na impaciência do trabalho
de base, da articulação de movimentos e agendas e na "fé cega faca
amolada" de um outro mundo possível
(http://www.youtube.com/watch?v=c2CLxeLNrLc_).
O papel é paciente, aceita tudo, aceita
continuar destruindo vidas, comunidades e o planeta só mais um pouquinho pra
salvar bancos, empresas e as elites mundiais. A história continua impaciente
exigindo de nós tudo ao mesmo tempo: oração e luta, contemplação e intervenção.
Nós, da leitura popular da Bíblia temos o desafio de não deixar a Bíblia ser um
papel a mais, um documento preguiçoso e intimista. Desatamos os nós e
vamos!
O documento final da Cúpula dos Povos
vai juntando nossos compromissos e nossa oração:
Contra a militarização dos Estados e
territórios;
Contra a criminalização das
organizações e movimentos sociais;
Contra a violência contra as mulheres;
Contra as grandes corporações;
Contra a imposição do pagamento de
dívidas econômicas injustas;
Pela garantia do direito dos povos à
terra e território urbano e rural;
Pela soberania alimentar e alimentos
sadios, contra agrotóxicos e transgênicos;
Pela garantia e conquista de direitos;
Pela solidariedade aos povos e países,
principalmente os ameaçados
por golpes militares ou institucionais,
como está ocorrendo agora no Paraguai;
Pela soberania dos povos no controle
dos bens comuns,
contra as tentativas de
mercantilização;
Pela democratização dos meios de
comunicação;
Pelo reconhecimento da dívida histórica
social e ecológica;
Pela construção do Dia Mundial de Greve
Geral;
Declaração final da Cúpula dos
Povos:
Movimentos sociais e populares,
sindicatos, povos e organizações da sociedade civil de todo o mundo presentes
na Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, vivenciaram nos
acampamentos, nas mobilizações massivas, nos debates, a construção das
convergências e alternativas, conscientes de que somos sujeitos de uma outra
relação entre humanos e humanos e entre a humanidade e a natureza, assumindo o
desafio urgente de frear a nova fase de recomposição do capitalismo e de
construir, através de nossas lutas, novos paradigmas de sociedade.
A Cúpula dos Povos é o momento
simbólico de um novo ciclo na trajetória de lutas globais que produz novas
convergências entre movimentos de mulheres, indígenas, negros, juventudes,
agricultores, famílias e camponeses, trabalhadores, povos e comunidades
tradicionais, quilombolas, lutadores pelo direito a cidade, e religiões de todo
o mundo. As assembleias, mobilizações e a grande Marcha dos Povos foram os
momentos de expressão máxima destas convergências.
As instituições financeiras
multilaterais, as coalizações a serviço do sistema financeiro, como o G8/G20, a
captura corporativa da ONU e a maioria dos governos demonstraram
irresponsabilidade com o futuro da humanidade e do planeta e promoveram os
interesses das corporações na conferência oficial. Em contraste a isso, a
vitalidade e a força das mobilizações e dos debates na Cúpula dos Povos
fortaleceram a nossa convicção de que só o povo organizado e mobilizado pode
libertar o mundo do controle das corporações e do capital financeiro.
Há vinte anos o Fórum Global, também
realizado no Aterro do Flamengo, denunciou os riscos que a humanidade e a
natureza corriam com a privatização e o neoliberalismo. Hoje afirmamos que,
além de confirmar nossa análise, ocorreram retrocessos significativos em
relação aos direitos humanos já reconhecidos. A Rio+20 repete o falido roteiro
de falsas soluções defendidas pelos mesmos atores que provocaram a crise
global. À medida que essa crise se aprofunda, mais as corporações avançam
contra os direitos dos povos, a democracia e a natureza, sequestrando os bens
comuns da humanidade para salvar o sistema econômico-financeiro.
As múltiplas vozes e forças que
convergem em torno da Cúpula dos Povos denunciam a verdadeira causa estrutural
da crise global: o sistema capitalista patriarcal, racista e homofóbico.
As corporações transnacionais continuam
cometendo seus crimes com a sistemática violação dos direitos dos povos e da
natureza com total impunidade. Da mesma forma denunciamos a dívida ambiental
histórica que afeta majoritariamente os povos oprimidos do mundo, e que deve
ser assumida pelos países altamente industrializados, que ao fim e ao cabo,
foram os que provocaram as múltiplas crises que vivemos hoje.
O capitalismo também leva à perda do
controle social, democrático e comunitário sobre os recursos naturais e
serviços estratégicos, que continuam sendo privatizados, convertendo direitos
em mercadorias e limitando o acesso dos povos aos bens e serviços necessários à
sobrevivência.
A dita "economia verde"é uma
das expressões da atual fase financeira do capitalismo que também se utiliza de
velhos e novos mecanismos, tais como o aprofundamento do endividamento
público-privado, o super-estímulo ao consumo, a apropriação e concentração das
novas tecnologias, os mercados de carbono e biodiversidade, a grilagem e
estrangeirização de terras e as parcerias público-privadas, entre outros.
As alternativas estão em nossos povos,
nossa história, nossos costumes, conhecimentos, práticas e sistemas produtivos,
que devemos manter, revalorizar e ganhar escala como projeto contra-hegemônico
e transformador.
A defesa dos espaços públicos nas
cidades, com gestão democrática e participação popular, a economia cooperativa
e solidária, a soberania alimentar, um novo paradigma de produção, distribuição
e consumo, a mudança da matriz energética, são exemplos de alternativas reais
frente ao atual sistema agro-urbano-industrial.
A defesa dos bens comuns passa pela
garantia de uma série de direitos humanos e da natureza, pela solidariedade e
respeito às cosmovisões e crenças dos diferentes povos, como, por exemplo, a
defesa do "Bem Viver" como forma de existir em harmonia com a
natureza, o que pressupõe uma transição justa a ser construída com os
trabalhadores e povos.
Exigimos uma transição justa que supõe
a ampliação do conceito de trabalho, o reconhecimento do trabalho das mulheres
e um equilíbrio entre a produção e reprodução, para que esta não seja uma
atribuição exclusiva das mulheres. Passa ainda pela liberdade de organização e
o direito a contratação coletiva, assim como pelo estabelecimento de uma ampla
rede de seguridade e proteção social, entendida como um direito humano, bem
como de políticas públicas que garantam formas de trabalho decentes.
Afirmamos o feminismo como instrumento
da construção da igualdade, a autonomia das mulheres sobre seus corpos e
sexualidade e o direito de uma vida livre de violência. Da mesma forma
reafirmamos a urgência da distribuição de riqueza e da renda, do combate ao
racismo e ao etnocídio, da garantia do direito a terra e território, do direito
à cidade, ao meio ambiente e à água, à educação, a cultura, a liberdade de
expressão e democratização dos meios de comunicação.
O fortalecimento de diversas economias
locais e dos direitos territoriais garantem a construção comunitária de
economias mais vibrantes. Estas economias locais proporcionam meios de vida
sustentáveis locais, a solidariedade comunitária, componentes vitais da
resiliência dos ecossistemas. A diversidade da natureza e sua diversidade
cultural associada é fundamento para um novo paradigma de sociedade.
Os povos querem determinar para que e
para quem se destinam os bens comuns e energéticos, além de assumir o controle
popular e democrático de sua produção. Um novo modelo energético está baseado
em energias renováveis descentralizadas e que garanta energia para a população
e não para as corporações.
A transformação social exige
convergências de ações, articulações e agendas a partir das resistências e
alternativas contra hegemônicas ao sistema capitalista que estão em curso em
todos os cantos do planeta. Os processos sociais acumulados pelas organizações
e movimentos sociais que convergiram na Cúpula dos Povos apontaram para os
seguintes eixos de luta:
Voltemos aos nossos territórios,
regiões e países animados para construirmos as convergências necessárias para
seguirmos em luta, resistindo e avançando contra o sistema capitalista e suas
velhas e renovadas formas de reprodução.